Número: 3.3 - 5 Artigo(s)

Voltar ao Sumário

Artigos Originais

Estudo experimental de análise da esterilidade na reutilização de bisturi harmônico

Experimental study on the analysis of sterility in the reuse of harmonic scalpels

Cristiane das Graças Alves Uyeno

Enfermeira, Programa de Pós-Graduação em Engenharia Biomédica. Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)

Endereço para correspondência
Cristiane das Graças Alves Uyeno
Av. Sete de Setembro, 3165 - Rebouças
CEP 80230-901 - Curitiba - PR - Brasil

Resumo

O bisturi harmônico é um instrumento utilizado em videocirurgia, que realiza o corte e a coagulação de tecidos. Na tentativa de reduzir custos relacionados ao emprego de artigos de uso único, várias instituições, de distintos países, têm adotado a reutilização desse item. O objetivo deste estudo foi avaliar a eficácia do processo de esterilização na reutilização do bisturi harmônico. O corpo amostral partiu de 30 unidades de bisturis harmônicos de dois fabricantes distintos. O inóculo utilizado para a contaminação constitui-se de suspensão (a) Geobacillus stearothermophilus e (b) Bacillus atrophaeus var. niger, na forma esporulada, acrescido de sangue de carneiro desfibrinado estéril. Os dois grupos foram submetidos ao processo de desmontagem, fase essencial para o processo de limpeza. As amostras remanescentes mostraram que, nas condições desse experimento, refutaram a hipótese inicial da pesquisa, quanto à segurança na reutilização de bisturis harmônicos, pois detectou-se a presença de adesão bacteriana, a qual remete ao risco eminente de infecção de sítio cirúrgico.

Palavras-chave: Esterilização; Reutilização de Equipamento; Infecção Focal

 

INTRODUÇÃO

O emprego da eletrocirurgia em procedimentos cirúrgicos utilizada com diferentes correntes elétricas tem como finalidade a desnaturação de proteínas e coagulação. Esta técnica vem contribuindo para a segurança transoperatória. A energia gerada de um equipamento eletrocirúrgico é aplicada por um eletrodo ativo, sendo este uma caneta de cautério usada em cirurgias convencionais ou bisturi harmônico utilizado em cirurgias minimamente invasivas, conhecidas por videolaparoscópicas1.

Um conceito em constante evolução, que está sendo incorporado por grande parte da medicina é o procedimento cirúrgico minimamente invasivo, pois agride menos o tecido durante a realização de uma cirurgia. Ou seja, as incisões para atingir os órgãos que serão reparados são reduzidas em extensão pela melhoria da técnica cirúrgica com diminuição das incisões e etapas. Tais aparelhos permitem a realização do procedimento por meio de furos com o uso de videolaparoscopia2.

A pressão exercida sobre o tecido com a superfície da lâmina provoca a coagulação do vaso sanguíneo por tamponamento e o seu selamento por intermédio do coágulo de proteína desnaturada3. Embora seja um dispositivo de alto valor agregado e descartável, estudos revelam que o emprego do bisturi harmônico que realiza o corte e coagulação reduz o tempo cirúrgico em média de uma hora. Nessa quantidade de tempo os benefícios produzidos superam o custo adicional do material4.

Compreendem-se diversos benefícios para os pacientes no emprego de bisturis harmônicos, mas o aumento dos custos em saúde é alvo de preocupação por parte de administradores hospitalares, profissionais de saúde e fontes pagadoras, seja o Sistema Único de Saúde (SUS) ou sistema privado por meio de operadoras de planos de saúde. Na tentativa de reduzir custos relacionados ao emprego de artigos de uso único, várias instituições, de distintos países, têm adotado o reuso desse item5.

Nos Estados Unidos da América, um estudo, realizado em 2005, analisou o custo beneficio de bisturis harmônicos de fabricantes distintos. O resultado foi favorável para o reuso deste dispositivo biomédico para 20 reprocessamentos6.

Em relação à extensão da prática do reuso em âmbito hospitalar ter sido silenciosa por muitos anos, a crescente complexidade dos procedimentos cirúrgicos e a necessidade do emprego de artigos biomédicos descartáveis, muitas vezes de alto custo, vêm tornando o reuso um atalho atraente para os serviços de saúde6. Regulamentações sobre a fabricação de artigos médico-hospitalares, abordando o reuso de artigos de uso único, destacam definições e suscitam algumas reflexões, dentre elas a que se refere à "segurança" do paciente cirúrgico7.

Vale ressaltar que atualmente existe uma banalização mundial sobre os riscos, os quais envolvem o reuso de dispositivos de uso único. Inúmeras são as ocorrências de surtos de infecção de sítio cirúrgico que evidenciam o emprego do reuso de artigos descartáveis.

Taxas elevadas de morbimortalidade relacionada a infecções hospitalares de sítio cirúrgico admitem um problema de saúde pública mundial, a ponto de ser discutido em vários países, com o intuito de procurar justificativas para um método eticamente questionável e economicamente discutível8,9.

Nas últimas décadas, a conscientização dos profissionais de todos os setores internos dos hospitais passou a ter uma contribuição significativa, na redução de infecção hospitalar, principalmente o setor de esterilização de materiais. Cada vez mais as exigências que remetem cirurgia segura demonstram que a incidência de infecções de sítio cirúrgico pode ser considerada um marcador institucional de garantia de qualidade.

As Infecções de Sítio Cirúrgico (ISC) são caracterizadas pela penetração e multiplicação do microrganismo na incisão operatória, por instrumentais cirúrgicos contaminados9. Casos graves de infecções de sítio cirúrgico, causadas por microbactérias de crescimento rápido ocasionaram movimentações das agências fiscalizadoras em todo o território nacional. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) desenvolveu ações para a redução dos casos que estavam fortemente relacionados às falhas nos processos de limpeza, desinfecção e esterilização de produtos médicos. Na maioria dos serviços de saúde investigados, os instrumentais cirúrgicos foram submetidos somente ao processo de desinfecção, e não à esterilização, como determina a Resolução RE nº 2606/0610.

Diante do exposto, conclui-se que todos os artigos usados no ato operatório sejam esterilizados previamente, para não causar eventos adversos. Qualquer falha proveniente do processo de limpeza ou do agente esterilizante poderá constituir agente infeccioso de alto nível. Portanto, a segurança dos artigos usados em ato operatório que entram em contato com o sistema vascular, é imprescindível.

Inúmeros são os dispositivos utilizados em sítio cirúrgico que podem ser considerados elos nas ISC. Estes dispositivos quando processados inadequadamente ocasionam infecções pela transmissão do agente infeccioso11,12.

Causa espécie a controvérsia sobre a reutilização de bisturis harmônicos no Brasil, uma vez que estão proibidos de serem reprocessados em território nacional. Porém, o reuso deste dispositivo é amplamente realizado em instituições hospitalares, muitas vezes por orientação do próprio fabricante.

Percebe-se a necessidade de um maior número de pesquisas sobre esse tema polêmico, tão comum na prática hospitalar. O presente trabalho teve como objetivo avaliar a eficácia do processo de esterilização na reutilização de bisturis harmônicos.


MATERIAIS E MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa experimental, aplicada, comparativa e controlada, realizada entre 2012 e 2013 no laboratório de microbiologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e no Instituto de Tecnologia do Paraná (TECPAR).

O parâmetro estabelecido para esta pesquisa é mundialmente aceito, por haver forte evidência metodológica na contaminação "desafio" com a inoculação de microrganismos resistentes ao método de esterilização em sangue.

Os inóculos utilizados para incubação neste experimento foram adquiridos no Laboratório de Microbiologia de Referência do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde da Fundação Osvaldo Cruz (FIOCRUZ). Para incubação, utilizaram-se duas bolsas de 100 ml de sangue de carneiro, desfibrilado e estéril, o qual foi escolhido por ser o mais semelhante ao sangue humano. As cepas utilizadas neste estudo são:

  • Geobacillus stearothermophilus (ATCC 7953), na forma esporulada na concentração de 106 unidades formadoras de colônias por mililitro (UFC/ml), presente e resistente no controle da eficácia dos ciclos de esterilização a vapor.
  • Bacillus atrophaeus var. niger (ATCC 9372), utilizado para analisar a morte microbiana na esterilização por óxido de etileno13,14.

  • Seleção de amostras

    Objetivando a determinação do cálculo para o tamanho amostral, optou-se por calcular o tamanho da amostra a partir da opção de utilizar um poder estatístico de 99% (chance de se detectar a diferença esperada em cada grupo) e das seguintes suposições: no processo de limpeza manual a incidência de eventos adversos é de 50% e no processo de limpeza mecânica é de 5%. Logo, foram avaliados 12 bisturis harmônicos denominados grupo A e outros 12 bisturis harmônicos denominados grupo B. Para contagem microbiana, foram utilizadas três pinças novas, sendo 3 unidades de cada fabricante, as quais perfazendo o grupo-controle (aproximadamente 20% do tamanho amostral - 30 unidades)15.

    O grupo A - Foi composto por bisturis harmônicos reutilizáveis de acordo com a orientação do fabricante. O grupo B, por sua vez, foi composto por bisturis harmônicos de uso único em sua rotulagem.

    Com o propósito de garantir a presença dos microrganismos, testes para desafiar a limpeza e a esterilização foram realizados em duas fases: Fase 1- contaminação artificial e Fase 2- a avaliação dos dados indicados pelo fabricante.

    O critério de inclusão adotado pressupõe bisturis harmônicos com apenas um uso cirúrgico. Por sua vez, o critério de exclusão assume pinças danificadas e bisturis utilizados em cirurgias contaminadas.

    Preparação das amostras

    A preparação das amostras iniciou-se com a organização do ambiente e dos materiais a serem utilizados. Em seguida, a degermação das mãos foi realizada com auxílio da escova de clorexidina a 0,5% (técnica asséptica) e a posteriore foi vestida a paramentação cirúrgica descartável. No passo seguinte foi montada a mesa para a realização dos experimentos com campos descartáveis impermeáveis estéreis.

    A primeira fase de preparação deu-se com a contaminação de 100 ml de sangue de carneiro desfibrinado estéril por Geobacillus stearothermophilus (ATCC 7953). O segundo passo, em uma segunda mesa, foi replicado o mesmo processo para a contaminação em 100 ml de sangue de carneiro desfibrinado estéril com o Bacillus atrophaeus var. niger (ATCC 9372).

    As amostras novas foram lavadas com água estéril, detergente enzimático e secadas com auxílio de ar comprimido medicinal. Depois houve a preparação dos inólucos para o teste de confirmação da carga de microrganismos inoculada.

    Aderência da carga microbiana

    A segunda fase deu-se pela contaminação de três amostras em 200 ml de sangue de carneiro contaminados com 106 unidades formadoras de colônias por mililitro (UFC/ml):

  • 03 amostras contaminadas com Bacillus atrophaeus var. níger;
  • 03 amostras contaminadas com Geobacillus stearothermophilus.
  • Este controle foi fundamental para detectar a aderência do microrganismo nas amostras durante uma hora, tempo médio de um procedimento cirúrgico videolaparoscópico. Somente após o teste de confirmação que atestou a capacidade de aderência do inóculo nos instrumentais, deu-se prosseguimento à pesquisa15.

  • Contaminação do grupo controle

    Após as contagens de microrganismos do grupo controle, teve início a contaminação do grupo experimental pelas hastes internas e lúmens dos bisturis harmônicos, injetando 20 ml de suspensão microbiana com sangue e inóluco. Com o auxílio de uma seringa, foram injetados 20 ml do inóculo no interior dos lúmens a cada 20 minutos, durante uma hora. Tal procedimento simulou o manuseio do bisturi harmônico pela mão do cirurgião, as roscas e as empunhaduras das pinças foram pressionadas a cada 20 minutos, até completar uma hora de contato.

    Limpeza, embalagem e esterilização

    Na fase seguinte, as amostras partiram para a fase do processamento que corresponde ao desmonte, à limpeza, desinfecção e esterilização. Elas foram submetidas primeiramente ao desmonte, em seguida, imersão em solução de água estéril aquecida a aproximadamente 40°C com detergente enzimático em um recipiente de aço inox estéril, por 5 minutos, conforme orientação do fabricante. A limpeza manual foi realizada com auxílio de escovas descartáveis de 1 mm a 3 mm de diâmetro para lavagem interna dos lúmens. Outras escovas de cerdas delicadas foram utilizadas para a limpeza das partes externas. O enxágue foi realizado com auxílio de água estéril e a secagem com ar comprimido medicinal.

    A limpeza automatizada foi realizada por meio de lavadora ultrassônica de 35,3 litros com frequência do Ultrassom de 38 kHz.

    Por fim, foi realizado o enxágue com água esterilizada e a secagem com ar comprimido medicinal. Cinco amostras de cada grupo foram acondicionadas individualmente em papel grau cirúrgico e submetidas a diferentes métodos de esterilização. As amostras do grupo A foram esterilizadas em baixa temperatura por óxido de etileno via prestadora de serviço terceirizado, as quais foram condicionadas individualmente em saco plástico tipo "zip lock" e acondicionadas em caixas plásticas rígidas e fechadas. As demais amostras (grupo B) foram esterilizadas com dados do fabricante em autoclave a vapor, em 134°C por 5 minutos16.

    Avaliação da esterilidade

    Objetivando a redução dos custos e sem perda de generalidade, foram retiradas três unidades representativas de cada corpo de prova para serem submetidas aos testes de contagem microbiana e teste de esterilidade, utilizando o método de inoculação direta no Instituto de Tecnologia do Paraná (TECPAR).

    Análise de critérios para a tomada de decisões sobre o reuso

    Na aplicação de critérios para a realização do reuso de dispositivos biomédicos é imprescindível o entendimento das normas vigentes e das instruções fornecidas pelo fabricante, antes mesmo da aquisição do artigo. Para obter-se um maior conhecimento do dispositivo, uma ficha de avaliação para cada bisturi harmônico foi desenvolvida. Visando mapear estes dados, o desenvolvimento de um protocolo de acordo com os itens abaixo17:

  • Descrição técnica do produto: Dados referentes ao fabricante marcam e valor aproximado do dispositivo;
  • Classificação do produto relacionado á sua criticidade;
  • Características técnicas do dispositivo;
  • Aceitabilidade do processo de limpeza;
  • Modificação da integridade física após reuso do dispositivo;
  • Presença ou não do dispositivo na lista negativa estabelecida nas legislações vigentes;
  • Rotulagem do produto junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária; (ANVISA);
  • Risco de acidente de trabalho durante o processo de reuso;
  • Rastreabilidade do reuso.

  • RESULTADOS

    A análise desses bisturis corrobora os resultados já consagrados na literatura sobre a reutilização deste dispositivo descartável. Os resultados obtidos indicam que o desmonte de bisturis harmônicos geralmente ocasiona danos irreparáveis à sua estrutura física. Essa dificuldade no desmonte foi associada à recuperação de carga microbiana. Ressalte-se que materiais descartáveis são geralmente fabricados a partir de matérias-primas que não resistem a produtos e artefatos abrasivos, o que compromete a técnica de desmonte e pode alterar a característica do fabricante17,18.

    Durante a desmontagem houve alterações físicas (quebras) na haste branca, base giratória e haste da camisa na pinça do Grupo A e no braço de retenção e batente do tecido, chave de torção e gatilho da pinça do Grupo B.

    Todas as amostras inoculadas por carga microbiana seguiram as seguintes etapas para o processamento:

  • Desmonte das amostras;
  • Imersão em detergente enzimático;
  • Limpeza manual;
  • Enxague;
  • Limpeza mecânica;
  • Enxague;
  • Secagem;
  • Armazenamento.

  • Os resultados obtidos, referentes ao desafio simulado com a cepa microbiana de Geobacillus stearothermophilus e Bacillus atrophaeus, em bisturis harmônicos novos são apresentados na Tabela I.




    Os resultados apresentados na Tabela I confirmam a aderência do inóluco e do sangue nas amostras, validando o processo de contaminação por contagem de unidades formadoras de colônias.

    Os resultados da amostragem do grupo experimental são apresentados na tabela II.




    A análise dos dados referenciados do fabricante para comercialização em território nacional para assegurar o reuso, são apresentados na tabela III.




    Nos estudos da natureza desta investigação, a realização da contagem microbiana preliminar é imprescindível. Observa-se a importância do desmonte para o segmento da limpeza nesta pesquisa, pois confirma-se o primeiro e mais importante passo no processamento dos artigos. Todas as amostras de ambos os grupos apresentaram presença de microrganismos por UFC. O processo de desinfecção, seja esta, química ou térmica, assim como a esterilização, não existe sem a remoção completa de toda a matéria orgânica visível ou não dos artigos. Se não está limpo não pode ser esterilizado ou muito menos usado em um segundo paciente.


    DISCUSSÃO

    A prática do reuso, sem o devido processamento não passa de uma crença, e que, no entanto, vem sendo executada desde a década de 80, interferindo na qualidade da assistência ao paciente cirúrgico. A proposta de investigar a eficácia da esterilização de bisturis harmônicos utilizados em procedimentos cirúrgicos teve o intuito de garantir o entendimento dos profissionais da saúde, quanto ao risco eminente de infecção.

    Atualmente, os artigos descartáveis estão tornando-se uma pandemia, na qual o risco que envolve a reutilização destes artigos é banalizado. Este é o caso dos dois bisturis harmônicos discutidos neste trabalho. Ao realizar a análise aplicando-se as legislações vigentes e informações disponibilizadas pelos fabricantes, podemos observar que ambas contemplam as mesmas funções, características, criticidade quanto ao uso e acima de tudo ambos não são desmontáveis, fator crucial para a segurança desta prática.

    Segundo os resultados obtidos nesta pesquisa, observa-se a impossibilidade da reutilização de ambos os bisturis harmônicos aqui testados, pois houve dificuldade no processo de desmonte seguido do comprometimento do processo de limpeza, o que ocasionou a presença de material orgânico nos resultados laboratoriais.

    De forma semelhante Greene 2004, chegou à conclusão que a funcionalidade de bisturis harmônicos fica comprometida após o uso, impossibilitando este processo20.

    O processamento de dispositivos médicos nos serviços de saúde é algo complexo. O objetivo primordial é sempre evitar a ocorrência de eventos adversos relacionados ao reuso. Neste sentido, a redução da carga microbiana a partir do processo de desmonte seguido da limpeza é fundamental para evitar a infecção cruzada.

    A história de complicações pelo reuso de artigos biomédicos vem da década de 70, antes do ínico da fabricação de dispositivos descartáveis. A maioria dos dispositivos médicos consistia de vidro, metal, borracha. Considerados materiais que fáceis de limpar e reprocessar. Com o avanço da tecnologia, no entanto, instrumentos com lúmens menores e mais complexos dificultaram o processo de limpeza e consequentemente ocasionou uma alta taxa de patogênos, levando muitos pacientes a serem acometidos por acontaminação cruzada.

    O advento da transmissão do HIV revolucionou a capacidade da indústria na fabricação de artigos de uso único, dando início à mentalidade do descartável. A conveniência de produtos descartáveis inicialmente foi um alívio para os hospitais, pois não teriam mais que se preocupar com a vida útil do produto, quebra e avaria presentes em artigos biomédicos até então permanentes21.

    Neste período, hospitais europeus passaram a vivenciar infecções hospitalares de sítio cirúrgico até então incomuns, e adotaram a pratica do descarte de produtos permanentes utilizados em pacientes expostos aos chamados príons (Doença de Creutzfeldt-Jakob), proteína está resistente a diversos métodos de esterilização22.

    Vários países trabalham para rever as leis com a finalidade de coibir ou proibir a pratica do reuso. Na Alemanha e Suécia, empresas terceirizadas e hospitais podem reusar artigos de uso único mediante uma regulamentação semelhante à aplicada aos fabricantes. Nos Estados Unidos, pesquisas realizadas demonstraram que 30 % dos hospitais americanos reutilizavam artigos de uso único. No entanto, na França, Reino Unido, Itália, Espanha e Suíça, o reuso de produtos para saúde descartáveis é extremamente proibido23,24.

    Legislações especificas no Brasil, coíbem o reuso de dispositivos invasivos que entram em contato com o sistema vascular, um exemplo pertinente destas legislações é a RDC 2605 e RDC 2606, ambas de 11 de agosto de 200625.

    É importante observar o papel dos fornecedores e operadoras na reutilização de produtos para saúde. Aspectos puramente econômicos, sem nenhuma sustentação técnico-científica, acabam fazendo parte da prática hospitalar. Uma Decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) não permite aos planos de saúde alterar tratamento sugerido por médicos, pois o paciente, consumidor do plano de saúde, não pode ser impedido de receber tratamento com o método mais moderno disponível no mercado, mesmo que se trate de um dispositivo de uso único de alto custo26.

    Encontra-se em andamento no Ministério Público do Estado de São Paulo uma ação civil pública contra uma operadora de plano de saúde que é acusada de prática abusiva em saúde pública. Segundo a denúncia, essa operadora impõe aos médicos e hospitais cooperados a reutilização de lâminas de shaver de uso único, com ameaça de expulsão em caso de não atendimento. Repassando aos cooperados apenas um terço do valor do produto, a operadora em questão pressiona os cooperados e distribuidores a reprocessar as lâminas de shaver por ao menos três vezes27.


    CONCLUSÃO

    Os resultados obtidos indicam que, a grande maioria dos bisturis harmônicos apresentaram danos na estrutura física ao se realizar o desmonte e houve a recuperação do microrganismo Geobacillus stearothermophilus e Bacillus atrophaeus em todas as amostras analisadas, indicando que nem a esterilização em alta temperatura ou baixa temperatura foi eficaz nas condições deste experimento.

    A incidência de contaminação apresentada nesta pesquisa retrata que o processo de limpeza é passível a falhas dentro de um reprocessamento, seja ele manual ou mecanizado. A ocorrência pode ser verificada devido ao grau de dificuldade apresentado pelos produtos médico-hospitalares em sua estrutura física, uma vez que muitos deles possuíam lúmens estreitos, que dificultam a eliminação de resíduos biológicos. Quando a limpeza não alcança a eficácia desejada, isso reflete no processo de esterilização, pois os resíduos presentes protegem, de certa forma, a carga microbiana da ação do agente esterilizante.

    Com base nos fatos aqui apresentados, estudos relacionados ao reuso de bisturis harmônicos, entre outros dispositivos biomédicos, devem ser realizados, principalmente testes de funcionalidade.

    Por fim, este trabalho ainda mostra que existe uma interface com a questão de regulação de mercado e que envolve práticas adotadas por operadoras de planos de saúde. A discussão, portanto, transcende os aspectos sanitários e suscita um amplo debate com agências reguladoras, instituições assistenciais de saúde operadoras de planos de saúde, distribuidores de produtos médicos, associações da área e até mesmo os órgãos de defesa do consumidor.


    REFERÊNCIAS

    1. Schneider Júnior B, Abatti PJ . Desenvolvimento de um Equipamento Eletrocirúrgico com Saída não Chaveada. Revista Brasileira de Engenharia Biomédica 2005;21:15-24.

    2. Amaral JF. Laparoscopic application of an ultrasonically activated Scalpel. Gastrointestinal Endoscopy Clinics of North América 1993;3:381-92.

    3. Yoshida RA, Rollo WB, Kolvenbach HA, Sá SER. "Curva de aprendizado los Cirurgia aórtica videolaparoscópica: Estudo experimental los Porcos". Jornal Vascular Brasileiro 2008;7:231-8.

    4. Pinto TJA, Graziano KU. Reprocessamento de artigos médicos - hospitalares de uso único. In: Fernandes, At Infecção Hospitalar e suas interfaces na área da saúde. São Paulo: Atheneu. p.1.070-7, 2000.

    5. Périssat J. Laparoscopic surgery: a pioneers point of view. World Journal of Surgery 1999;23:863-8.

    6. Schmidbauer S et al. Experience with Ultrasound Scissors and Blades (Ultracision) in open and Laparoscopic Liver Resection. Annals of Surgery 2002;23:27-30.

    7. United States Food and Drug Administration. Compliance Policy Guide. Reuse of medical disposable devices. 7124.6. Washington, DC: FDA, 24 Sept. 1987

    8. Martins Maria A, Elisabeth F, Matos JC. Goulart EMA. Vigilância pós-alta das infecções de sítio cirúrgico em crianças e adolescentes em um hospital universitário de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública 2008;24:1033-41.

    9. Heeg P. Roth K. Reichel R. Cogdill P. Bond WW. Decontaminated single-use device: an oxymoron that may be placing patients at risk for cross- contamination. Infect Control Hosp Epidemiol 2001:22(9):542-9.

    10. Cardoso, AM et al. Emergence of nosocomial Mycobacterium massiliense infection in Goiás, Brazil. Microbes and Infection 2008;1:.1-6.

    11. Rabhae GN, Ribeiro Filho N, Fernandes AT. Infecção do sítio cirúrgico. In: Fernandes AT, Fernandes MO, Ribeiro Filho N, editores. Infecção hospitalar e suas interfaces na área da saúde. São Paulo: Atheneu; 2000. p. 479-505.

    12. Lacerda RA. Controle de infecção em centro cirúrgico: fatos, mitos e controvérsias. São Paulo: Atheneu; 2003. Infecção do sítio cirúrgico; p. 69-84.

    13. Farmacopéia brasileira. 4. ed. São Paulo: Atheneu, 1988.

    14. Novitsky, TJ, Schmidt-Gengenbach J, Remillard JF. Factors affecting recovery of endotoxin adsorbed to container surfaces. J. Parenter. Sci. Technol. 1986;40:284-6.

    15. Alfa MJ, Nemes R. Inadequacy of manual cleaning for reprocessing single-use, triple-lumen sphinctrertomes: Simulated-use testing comparing manual with automated cleaning methods. Infect. Control Hosp. Epidemiol. Thorefare 2003;3:193-207.

    16. Rutala WA, Weber JD. Guideline for Disinfection and Sterilization in Healthcare Facilities. Atlanta: CDC; 2008.

    17. Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RE n° 2605, de 11 de agosto de 2006. Estabelece lista de produtos médicos enquadrados como de uso único proibidos de serem reprocessados. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, ago. de 2006.

    18. Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RE n°2606, de 11 de agosto de 2006. Dispõe sobre as diretrizes para a elaboração, validação e implantação de protocolos de reprocessamento de produtos médicos. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, ago. de 2006.

    19. Greene, VW. Reuse of medical devices labeled for single-use. In: MAYHALL, C.G. Hospital Epidemiology and Infection Control. 3. ed. Lippincott: William & Wilkins, 2004. p.1535 - 45.

    20. Dunn D. Reprocessing single-use devices - the ethical Dilemma. AORN J 2002:75(5):989-99.

    21. Rutala WA, Weber DJ. Creutzfeldt-Jakob disease: recommendations for disinfection and sterilization. Clin Infect Dis 2001;32:1348-56.

    22. Ribeiro SMCP. Reprocessamento de cateteres de angiografia cardiovascular após uso clínico e contaminados artificialmente: avaliação da eficácia da limpeza e da esterilização [tese]. São Paulo: Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo; 2006.

    23. Pinto TJA, Graziano KU. Reprocessamento de artigos médicos-hospitalares de uso único. In: Fernandes AT, Fernandes MOV, Ribeiro N Filho. Infecção hospitalar e suas interfaces na área de saúde. São Paulo: Atheneu; 2000. p. 1070-8.

    24. Brasil. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Reprocessamento de produtos médicos. Brasília, 2006. Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/divulga/noticias/2006/210806_1.htm>. Acesso em: 5 jun. 2012.

    25. Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Decisão do STJ não permite planos de saúde alterar tratamento sugerido por médicos. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2007-03-23/decisao-do-stj-nao-permite-planos-de-saude-alterarem-tratamento-sugerido-por-medicos>. Acesso em: 20 jun. 2012.

    26. Ministério Público (SP). Prática abusiva a saúde pública. Disponível em: <http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_consumidor/acp/acp_mp/acpmp_saude_privado/acp mp_priv_planos_saude/05-1235.htm>. Acesso em: 5 jun. 2012.

     

    Logo GN1