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Artigos de Revisão

Efeitos e sintomas da privação do exercício físico - revisão

Effects and symptoms of deprivation of physical exercise review

Hanna Karen Moreira Antunes1; Felipe Lopes Terrão2; Marco Túlio de Mello3

Resumo

Nosso objetivo foi revisar os efeitos e sintomas desenvolvidos durante a privação do exercício físico, principalmente em praticantes com dependência de exercício físico e com transtorno de imagem corporal, por meio de revisão sistemática. Foram utilizados artigos científicos disponíveis na base de dados do Pubmed, Scienc Direct, Cochrane, Ebsco Host, Ingenta Connect e Scopus, além de livros sobre o tema, sendo o período limitado de 1970 a 2009. Como critérios de inclusão foram utilizados trabalhos com na temática privação de exercício tanto em dependentes como em não-dependentes e estudos com essa metodologia. Assim, foram selecionados 63 trabalhos, sendo 4 livros e 59 artigos científicos. Os estudos encontrados demonstraram que a privação do exercício físico é um fator determinante para o surgimento de alterações negativas no dependente de exercício físico, tanto em um contexto fisiológico (tolerância, limiar de dor) quanto psicológico (ansiedade, depressão, irritabilidade). Além disso, há relatos de que o surgimento dessas alterações ocorre em ambos os gêneros e após 24-36 horas sem essa prática. Nessa linha de raciocínio, o Indivíduo com transtornos de imagem corporal também pode desenvolver alterações fisiológicas e psicológicas negativas semelhantes às desenvolvidas pelo dependente de exercício físico durante a privação, já que o exercício físico é utilizado pelo praticante com transtorno de imagem corporal para ganho ou perda de massa corporal na tentativa de amenizar a insatisfação com a própria aparência física. Como conclusão é possível afirmar que a privação do exercício físico colabora para o surgimento e desenvolvimento de variáveis fisiológicas e psicológicas negativas.

Palavras-chave: dependência (psicologia), exercício, imagem corporal.

 

FUNDAMENTAÇÃO

Classicamente tem sido demonstrado na literatura cientifica que a prática regular do exercício físico proporciona inúmeros benefícios, entre eles, podemos citar melhoras nos aspectos fisiológicos relacionados aos sistemas cardiorrespiratório, muscular, endócrino e nervoso1. Além desses benefícios, a esfera psicológica também é beneficiada por essa prática, com evidentes impactos nos fatores psicobiológicos refletidos por uma redução de escores indicativos de depressão e ansiedade, melhora da função cognitiva, resultando em uma melhor qualidade de vida1-4. Mesmo considerando tais benefícios, um corpo de evidências tem apontado que, quando praticado de forma compulsiva, o exercício físico pode acarretar em alterações negativas5, 6. Tal compulsão pode ser referida como uma necessidade incontrolável de se exercitar, o que está relacionado com a existência de uma condição conhecida como dependência de exercício físico. Uma vez impedido de realizar essa atividade, o mesmo pode desenvolver diversas alterações negativas tanto do ponto de vista fisiológico quanto psicológico6, 7.

O primeiro relato sobre os efeitos da privação do exercício físico data da década de 70 e já demonstrava alterações nos estados de humor com o desenvolvimento de diferentes sintomas8. Em estudos posteriores, mesmo utilizando metodologias e populações distintas, também observou-se o desenvolvimento de sintomas tanto físicos quanto psicológicos em praticantes que foram privados do exercício físico6,9. Nessa linha de raciocínio, conhecer tais sintomas pode contribuir para identificar o nível de dependência e auxiliar no controle da compulsão pelo exercício físico.

Portanto, este artigo tem como objetivo abordar os principais efeitos e sintomas desenvolvidos durante a privação do exercício físico.


MATERIAL E MÉTODOS

O estudo constituiu-se como uma revisão sistemática sobre os efeitos e sintomas da privação do exercício físico. Foi utilizando como fonte de pesquisa livros relacionados com o assunto e artigos científicos específicos disponíveis e indexados pela base de dados PubMed ISI e Medline, Scienc Direct, Cochrane, Ebsco Host, Ingenta Connect e Scopus, no período de 1970 a 2009.

Foram utilizados trabalhos publicados em inglês e/ou português, e na busca bibliográfica foram utilizados os seguintes descritores: "exercise deprivation", "overtraining", "exercise dependence", "exercise withdrawal", "exercise addiction", utilizando-se os boleanos específicos destas bases a fim de obter diversos arranjos de busca, maximizando tanto a abrangência quanto a qualidade da pesquisa.

A seleção dos artigos teve como critérios de inclusão: (a) pesquisas com privação de exercício físico em não-dependentes de exercício físico e em dependentes de exercício físico; (b) estudos que usaram como metodologia a privação de exercício. Não foram considerados estudos envolvendo animais de experimentação, nem aqueles desenvolvidos por dissertações e teses, sendo essa a nossa limitação.

Através dos descritores acima citados, foram encontrados 3053 artigos científicos, dos quais 123 foram elegíveis para compor a presente revisão. No entanto, 60 trabalhos não dispunham de informações relacionadas aos sintomas e efeitos da privação do exercício, desta forma, para a composição final foram utilizados 63 trabalhos, sendo 4 livros e 59 artigos científicos (sendo 12 artigos de revisão e 47 artigos originais).

O primeiro relato sobre a privação do exercício físico

O primeiro relato realizado sobre privação do exercício físico foi feito por Baekeland, em 19708. Nesse estudo, o autor tinha como objetivo examinar os efeitos de um mês de privação do exercício físico no padrão de sono e bem-estar psicológico de sujeitos fisicamente ativos, no entanto, ele encontrou uma grande dificuldade em recrutar corredores voluntários que se exercitavam de cinco a seis dias por semana e que estivessem dispostos a se privar da prática do exercício físico por um mês. Tal dificuldade permaneceu mesmo quando foi oferecido incentivo financeiro aos voluntários, sendo possível incluir no estudo, apenas indivíduos que corriam regularmente de três a quatro dias por semana. Durante o período de um mês de privação do exercício físico, esses participantes relataram redução no bem-estar psicológico, apresentando durante a privação, diversos sintomas como: aumento de tensão, aumento no número de despertares durante o sono, tensão sexual e ansiedade8.

Essa dificuldade encontrada pelo autor e o questionamento do porque algumas pessoas se recusavam a ficar sem realizar exercícios físicos mesmo quando oferecido incentivo financeiro, foi o ponto elementar dos estudos que envolvem dependência e privação de exercício físico, e representam à base de todas as pesquisas que se seguiram desde então, o que caracteriza um marco da linha de pesquisa sobre a privação do exercício físico.

Sintomas e efeitos da privação do exercício físico em dependentes e não-dependentes

A prática de exercício físico regular produz resultados positivos que são refletidos tanto na esfera fisiológica quanto psicológica, entretanto, a privação dessa atividade resulta em alterações negativas que comprometem as esferas mencionadas e a qualidade de vida9. Essas alterações estão relacionadas ao desenvolvimento de sintomas e sensações negativas que podem resultar em alterações de comportamento, alterações fisiológicas e distúrbios de humor durante a retirada desse comportamento compulsivo, sendo mais evidente em praticantes que apresentam características de dependência de exercício físico9-12. Antes de descrever os efeitos da privação no praticante com dependência de exercício físico é importante conceituar esse comportamento para possibilitar um melhor entendimento de como a prática compulsiva dessa atividade pode influenciar no comportamento psicosocial desse indivíduo.

A dependência de exercício físico é definida como "uma ânsia de atividade física que resulta em uma necessidade de se exercitar incontrolável e que se manifesta no comportamento fisiológico e/ou sintomas psicológicos"6,13,14, podendo ser caracterizada como uma obsessiva e doentia preocupação com o exercício físico15, no entanto, as suas causas ainda não são bem descritas. Apesar disso, sabe-se que é um comportamento multifatorial, podendo torna-se um fator determinante no comportamento já que o seu praticante desenvolve uma incontrolável necessidade de se exercitar, independentemente dos problemas, tanto da ordem social, profissional, comportamental e fisiológica6,13,14.

Baseados nessa temática, Antunes e cols16, em seu estudo com corredores de aventura, observou que eles apresentavam escores de dependência de exercício físico, mas não apresentaram indicativos relacionados a alterações do estado de humor, o que corrobora com o estudo de Rosa e cols., que também não encontrou diferenças nesse parâmetro antes e após a realização de um teste de esforço realizado até a exaustão máxima, utilizando nesse estudo voluntários dependentes de exercício físico, não dependentes de exercício físico e sedentários, sugerindo não ter existido alterações de humor nos grupos estudados17.

É importante considerar que a dependência de exercício físico pode ocorrer sob duas perspectivas, à primeira conhecida pelo termo "positive addiction", que descreve que o praticante de exercício físico utiliza essa ferramenta sempre com doses maiores para referir sensações de euforia e bem-estar18, e a segunda, conhecida pelo termo "negative addiction", que se contrapõem à primeira, onde o praticante pode aumentar a prática de exercício físico com o intuito de diminuir as sensações de angústia, ansiedade, depressão e irritabilidade19. No estudo de Antunes16 e Rosa17, a amostra não foi privada de exercício físico, o que potencialmente implicaria no surgimento de sintomas negativos de humor, além de colaborar com a compreensão do grau de dependência de exercício físico, o que poderia justificar os resultados encontrados pelos autores9-11,20.

Parece de fato que os sintomas da dependência de exercício físico estão intimamente relacionados com a privação dessa atividade. Isso parece ser mais evidente quando observamos os critérios descritos para caracterizar a dependência do exercício físico, entre estes estão alguns relacionados com a privação do exercício físico, tais como:

  • Sintomas de abstinência relacionados a transtornos de humor (irritabilidade, depressão, ansiedade, etc.), quando interrompido a prática de exercícios físicos;
  • Alívio ou prevenção do aparecimento da síndrome de abstinência por meio da prática de exercícios físicos e rápida reinstalação dos padrões prévios de exercícios;
  • Sintomas de abstinência após um período sem prática de exercícios fisicos14.


  • Hausenblas e cols., em seu estudo analisaram as possíveis variações diurnas em relação aos seus estados de humor durante a privação do exercício físico. Os autores observaram que os voluntários com menores níveis de dependência de exercício físico quando privados, não desenvolveram alterações nos estados de humor que pudessem ser expressos por escores elevados nessas medidas, entretanto, os voluntários com maiores níveis e sintomas de dependência do exercício físico apresentaram maiores alterações nessa mesma variável na mesma circunstância, desenvolvendo um comportamento similar aos dias em que não houve prática de exercício físico20. Resultados como estes evidenciam que os efeitos fisiológicos e psicológicos que ocorrem durante a privação do exercício físico podem contribuir para identificar componentes da dependência de exercício físico9,14,21.

    O estudo Clássico de Sachs & Pargman, relata que o surgimento dos sintomas da privação em dependentes de exercício físico, ocorre no intervalo de 24-36 horas sem essa prática, sendo evidenciado pelos seguintes por: ansiedade, agitação, culpa, irritabilidade, tensão e desconforto22. Já, o estudo de Mondin e cols. apontam que durante o período de 24-48 horas de privação do exercício físico já é possível observar o desenvolvimento de distúrbios de humor e diminuição do vigor23.

    Além dessas alterações desenvolvidas pela privação do exercício físico, alguns estudos apontam que muitas vezes o praticante de exercício físico com compulsão por essa atividade pode realizar duas ou mais sessões de treinamento por dia para atenuar ou diminuir os sintomas negativos, podendo o excesso de treinamento contribuir para o surgimento do overtraining24, nessa linha de raciocínio, quando o praticante dependente de exercício físico é impedido da realização sua atividade ele pode desenvolver sintomas e alterações fisiológicas e psicológicas negativas14. A partir disso, é possível hipotetizar que o surgimento do overtraining em dependentes de exercício físico pode contribuir para agravamento dos sintomas relacionados com alterações de comportamento, alterações fisiológicas e distúrbios de humor, quando o praticante dependente de exercício físico apresenta sintomas de overtraining, e consequentemente tem que interromper a pratica de exercício físico.

    É importante mencionar que estudos na temática dependência de exercício físico e privação têm sugerido que os sintomas observados com a falta de exercício físico parecem ser semelhantes aos sintomas desenvolvidos durante a abstinência de uma substância viciante, sendo os mais evidentes: irritabilidade, ansiedade, depressão e culpa6, 25,26.

    Embora os efeitos da prática regular do exercício físico estejam envolvidos com melhoras do ponto de vista psicológico como diminuição da ansiedade, depressão e sentimentos de angústia27,28, as evidências já comentadas mostram que a privação dessa atividade pode causar sintomas desagradáveis. Esses sintomas parecem permanecer mesmo quando distintas modalidades esportivas são observadas. Estudo com corredores tem demonstrado alterações de humor quando esses praticantes são privados de exercício físico29. Ainda com o foco nessa população, Anshel30, observou que corredores privados ou impedidos de realizar exercício físico, apresentavam sintomas como irritabilidade, frustração, culpa, depressão, problemas com o sono, problemas endócrinos, dor e tensão muscular. Já Szabo & Parkin31 analisando uma amostra de praticantes de arte marcial (Shotokan Karate) também puderam observar o surgimento de sintomas negativos durante um período de privação, como raiva, depressão, tensão, frustração, culpa, ansiedade, hostilidade, perturbação total do humor e a diminuição dos aspectos positivos, como vigor, alegria e felicidade31. Os sintomas da privação também foram observados em participantes que realizavam modalidades como natação, ciclismo e corrida, o estudo foi realizado durante cinco dias, onde os participantes foram privados do exercício físico do segundo ao quarto dia e exercitaram-se no primeiro e no último dia do estudo. Os resultados revelaram que ocorreram alterações nos estados de humor com o desenvolvimento de sintomas como aumento de tensão, depressão, ansiedade e diminuição do vigor durante o período de privação23.

    Em relação aos gêneros, parece não haver consenso sobre a magnitude dos efeitos da privação. De acordo com Robbins & Joseph29, mulheres podem reportar mais dificuldade com o desenvolvimento de sintomas como, irritabilidade, frustração, culpa e depressão durante o período de privação do exercício físico, devido ao fato de utilizarem essa atividade para combater o estresse diário. Por outro lado, Crossman32 e cols., apontam que homens podem apresentam maiores desconfortos quando interrompem seus programas de treinamento. No entanto, outras pesquisas, apontam que ambos os gêneros podem apresentar diminuição dos aspectos positivos e aumento de sintomas negativos durante a privação do exercício físico31,33.

    Muitas especulações têm sido feitas na tentativa de explicar os sintomas da privação. Berlin, Kop & Deuster34, em seu estudo utilizaram um grupo experimental formado por não dependentes de exercício físico que foram privados do exercício físico durante 7 dias, e observou os sintomas já descritos anteriormente. Os autores discutiram que talvez a relação entre a diminuição dos níveis de treinamento e a ocorrência dos sintomas depressivos desenvolvidos, poderia ser mediados em parte, por alterações fisiológicas e biológicas (como por exemplo, aumento de marcadores da coagulação e de inflamação). Em outro estudo do mesmo grupo, tentou-se comprovar a hipótese formulada anteriormente, para isso, os autores analisaram marcadores inflamatórios como: IL-6 (interleucina-6), proteína C-reativa, fibrinogênio e sICAM-1, e após 14 dias de interrupção da rotina de exercícios físicos, os autores não encontram alterações nos marcadores avaliados, o que levou a conclusão de que a privação do exercício físico pode resultar no desenvolvimento de alterações negativas de humor e fadiga, mas não em alterações nos marcadores inflamatórios35. O fato de não haver indícios que suportem mudanças fisiológicas em marcadores inflamatórios com a privação de exercício físico, pode estar relacionado com inúmeros fatores, entre eles, o período de privação. De fato, existe uma grande diversidade de estudos que avaliaram o intervalo de privação, intervalo esse que vão desde um único dia25 podendo chegar até 30 dias8.

    O estudo conduzido por Niven, Rendell & Chisholm36, avaliou as possíveis alterações de humor e insatisfação corporal em praticantes do gênero feminino durante um período de 72 horas de privação de exercício físico. Participaram deste estudo 58 mulheres, que se exercitavam pelo menos quatro vezes por semana. Após o período de privação, as voluntárias apresentaram indisposição e diminuição do bem-estar, além disso, esses sentimentos foram acompanhados de um aumento de tensão e insatisfação corporal. Alterações negativas de humor também foram observadas por Conboy37 quando o autor avaliou 61 corredores durante 10 dias de corrida e de 2 a 5 dias de privação do exercício físico.

    O que podemos perceber é que existe realmente uma grande variabilidade nos estudos, quando considerado o período de privação de exercício físico, o que como já comentado, pode justificar as diferenças entre os sintomas relatados. Classicamente o exercício físico é conhecido por conduzir a uma melhora da percepção dos níveis de dor e produzir alterações benéficas no sistema imune, no eixo HPA e na função autonômica38-40. Entretanto, após uma semana de privação do exercício físico foi encontrado aumento de sintomas como dor, fadiga e diminuição da atividade do eixo HPA7. Em outro estudo, Aidman & Woollard21, observaram o aumento da freqüência cardíaca de repouso em corredores de ambos os gêneros após o período de 1 dia de privação do exercício físico21. Tal resultado permite a elucidação de um paradoxo bastante interessante quando pontuados benefícios da pratica regular de exercício físico quando contraposto ao impedimento do mesmo. Isso nos leva a questionar quais seriam os sistemas orgânicos mais sensíveis à privação, uma vez que estudos que avaliaram marcadores inflamatórios35, sistema nervoso autônomo e variabilidade da freqüência cardíaca não encontraram resultados41,42 e o estudo com modulação do eixo HPA7 e o estudo com freqüência cardíaca de repouso encontraram21.

    É plausível que praticantes de exercício físico regular, dependentes ou não dependentes de exercício físico, quando privados de realizar sua atividade sofram uma experiência de perturbação dos seus estados de humor, sendo que o dependente enfrenta maiores dificuldades durante a privação9,10,19,23. Entretanto, é possível que haja realmente pontos mais frágeis em relação ao desenvolvimento desses sintomas apresentados, no entanto os reais mecanismos envolvidos ainda permanecem pouco elucidados.

    No quadro 1 são apresentados os trabalhos que observaram os sintomas e efeitos da privação de exercício (ver quadro 1).




    Os transtornos de imagem corporal e a privação do exercício físico

    Os transtornos psiquiátricos relacionados à distorção da auto-imagem corporal, como transtornos alimentares ou dismorfia muscular costumam ser marcados por elevado grau de sofrimento físico e psíquico, sendo associado a perdas sociais e ocupacionais significativas43. Entre os transtornos alimentares conhecidos, os principais são anorexia nervosa e bulimia nervosa, sendo que na primeira, a prática do exercício físico parece representar um recurso adicional para a perda de massa corporal. Por outro lado, no caso da bulimia nervosa, a compulsão pelo exercício físico está descrito como um potencial no comportamento inadequado compensatório, contribuindo para evitar o ganho de massa corporal44. Nessa relação entre o exercício físico e os transtornos alimentares, alguns estudos já descrevem o excesso de exercício físico como comum entre os praticantes com transtornos alimentares, sendo o exercício físico nessa situação é utilizado exclusivamente como ferramenta para perda de massa corporal e melhora da aparência física45,46.

    No estudo de Mond e cols, conduzido em uma amostra de 3.472 mulheres com idade entre 18-42 anos e que realizavam exercício físico de forma regular, observaram que da amostra total, 322 mulheres utilizavam o exercício físico exclusivamente para controlar ou diminuir a sua massa corporal, 136 mulheres relataram apresentar sentimentos de culpa quando não conseguiam realizar uma sessão do seu treinamento e 116 mulheres apresentavam características de transtornos alimentares47. No entanto, como o exercício físico é utilizado exclusivamente como ferramenta para alcançar a massa corporal total desejada, a privação ou impedimento da realização da sua rotina de exercícios físicos antes de conseguir a massa corporal idealizada poderia contribuir para o aumento de traços obsessivo-compulsivos já existentes, entretanto, após alcançar a massa corporal idealizada, o exercício físico pode perder a sua finalidade, permitindo hipotetizar que o praticante com transtorno de imagem corporal não necessariamente desenvolve compulsão pelo exercício físico45,46.

    Esta motivação para a magreza é tão pronunciada que pode afirmar-se que entre os adolescentes, mais da metade podem estar participando de algum programa de dieta48, 49. Ainda nessa perspectiva, 80% das meninas com idade até 18 anos e com IMC normal, reportaram desejar perder massa corporal. Embora a maioria das atitudes e comportamentos para reduzir a massa corporal total não apresente grandes riscos, a sua presença, pode, no entanto, acarretar riscos psicológicos e médicos significativos sendo associada, ao aumento dos riscos subseqüentes de desordens alimentares (anorexia e bulimia), o que reforça ainda mais a hipótese50. Nesse contexto, atletas do gênero feminino encontram-se em maior risco de desenvolver desordens alimentares do que as mulheres não-atletas com a mesma idade. Os autores ainda apontam que a utilização de exercício físico vigoroso com a intenção de queimar calorias foi à forma de controle da massa corporal total mais utilizada pelas mulheres, quer atletas quer não-atletas51.

    Assim, parece bastante razoável que a realização excessiva de exercício físico seja um aspecto importante ao surgimento das desordens alimentares, com aproximadamente 80% dos pacientes com anorexia nervosa e 55% com bulimia nervosa a envolverem-se em exercício físico compulsivo52. Dados como esses podem ser reforçados cada vez mais através de outros estudos que também apontam a relação entre transtornos alimentares e a utilização do exercício físico como ferramenta para manter ou diminuir a massa corporal total.

    Nesse contexto, Grave, Calugi, Marchesini, avaliaram 165 mulheres que apresentavam transtornos alimentares e foram hospitalizadas para tratamento. Os autores encontraram que do total da amostra, 39,4% foram diagnosticadas com anorexia nervosa, 17,0% com bulimia nervosa, 43,6% foram classificados como transtorno alimentar não especificado e 45,5 % apresentavam compulsão por exercício físico. Durante as 20 semanas de tratamento hospitalar a que as pacientes foram submetidas, elas não podiam realizar exercícios físicos, os autores observaram ao final do estudo que a média do índice de massa corporal (IMC) das pacientes havia aumentado, os episódios bulímicos e os vômitos auto induzidos haviam diminuídos. O que chamou a atenção nesse estudo foi o fato de que 39 mulheres não completaram o tratamento, evidenciando que os transtornos de imagem corporal e o impedimento da realização de exercícios físico pode ter contribuído para a desistência de 23,6% da amostra53.

    Essa preocupação em reduzir a massa corporal tem sido constantemente associada ao gênero feminino, no entanto, esse desejo de magreza já pode ser observado em praticantes de exercício físico do gênero masculino. Walker, Anderson & Hildebrandt, observaram em uma amostra de 549 homens que 63% tinham o desejo de reduzir a sua massa corporal total em média 8,5 kg54. Além da diminuição da massa corporal total, o gênero masculino também parece estar associado a outro tipo de transtorno psiquiátrico chamado dismorfia muscular. Trata-se de um subtipo do transtorno dismórfico corporal que ocorre apesar da grande hipertrofia muscular, os homens se consideram pequenos e fracos55. A dismorfia muscular é um transtorno presente quase exclusivamente em homens e que consiste em uma preocupação específica com o volume corporal e com o desenvolvimento dos músculos. O indivíduo portador de dismorfia muscular apresenta distorção da auto-imagem corporal, percebendo seus músculos pouco desenvolvidos, apesar da visível hipertrofia muscular, o que o leva a procurar ativamente aumentar sua massa muscular através de exercícios físicos excessivos e do uso de substâncias ergogênicas e de dietas hiperprotéicas56.

    O comportamento de compulsão ao exercício físico, é o maior fator de predição para a satisfação corporal e ansiedade física social57,58, essa compulsão parece refletir inclusive no perfil de corpo idealizado pelos homens que é em média 12,7kg mais musculado do que o seu corpo atual56. A esta relação com o corpo foi denominado como uma desordem dismórfica do corpo, onde, em vez de existir uma insatisfação patológica com uma parte do corpo, o indivíduo encontra-se insatisfeito com a totalidade do mesmo. Os indivíduos com dismorfia muscular, apesar de serem muito musculosos, acreditam que são menos musculosos do que parecem. Esta crença leva o indivíduo a se tornar obcecado com a realização de exercícios físicos, particularmente com a musculação, levando muitas vezes ao uso de recurso ergogênicos como os de esteróides anabolizantes59.

    Segundo McFarland & Kaminski, a distorção da própria imagem contribuiu para o surgimento de sintomas como aumento da ansiedade, depressão, sensibilidade interpessoal e diminuição da auto-estima, além disso, os autores relacionam que os comportamentos bulímicos e anoréxicos, obsessivo-compulsivos, problemas interpessoais e a utilização de substancias ergogênicas podem estar associadas com os sintomas da dismorfia muscular, mesmo quando a insatisfação corporal já foi controlada60.

    Como essa motivação para a magreza já pode ser observado em ambos os gêneros, existe a necessidade de entender o que motiva esses praticantes a utilizarem diversos recursos para atingir o peso idealizado. Nessa ótica, a pressão existente da mídia e da sociedade em geral em relação ao "físico ideal", tem sido constantemente elencada como principais vilões em relação ao culto do corpo ideal.

    Fallon & Hausenblas, utilizaram em seu estudo uma amostra de 63 mulheres que foram distribuídas em 4 grupos, sendo 2 grupos experimentais e 2 controle. O objetivo dos autores era verificar as possíveis variações de humor desenvolvidas pelo contato com imagens do que poderia ser considerado como "físico ideal feminino" e com imagens consideradas "neutras", e observar o papel do exercício físico agudo aeróbio nessa variação. No desenho experimental do estudo, ambos os grupos tiveram contato com as imagens e responderam a questionários de humor, sendo que o grupo controle respondeu os questionários antes e após à exposição ás imagens, e o grupo experimental, além de ter contato com as mesmas imagens e responder os questionários, realizou também 30 minutos de exercício físico aeróbio em esteira ergométrica, preenchendo os mesmos instrumentos antes e após o mesmo contato. Embora não tenha sido encontradas diferenças entre os grupos, os autores pontuam que quando em contato com imagens relacionadas ao "físico ideal", eles apresentaram sintomas de aumento de raiva, depressão e insatisfação corporal, sugerindo que no caso do grupo experimental o exercício físico não foi efetivo enquanto estratégia para evitar o desenvolvimento de alterações nos estados de humor negativo e tampouco pode evitar a diminuição da distorção da percepção da própria imagem corporal das voluntárias. Esses resultados fizeram os autores concluir que os transtornos de imagem corporal parecem influenciar muito das alterações observados em praticantes de exercícios físicos excessivos61.

    Portanto, compreender as motivações para a prática do exercício físico de forma excessiva pode contribuir para entender como a privação vai influenciar no funcionamento psicosocial desse praticante com transtorno de imagem corporal, além disso, o excesso de exercício físico pode ser um dos fatores utilizados como indicador de indivíduos com transtorno de imagem corporal19,46,57.

    Limitações dos estudos sobre a privação do exercício físico

    A avaliação da dependência do exercício físico e consequentemente dos efeitos da privação do exercício físico podem ser realizadas através de medidas qualitativas (estudos de casos, entrevistas) e quantitativas (questionários de auto-relato que avaliam as possíveis alterações de comportamento e distúrbios de humor)6,22,62,63, no entanto, mesmo com a utilização dessas medidas, alguns autores apontam limitações nas metodologias utilizadas nas pesquisas.

    Sobre a privação do exercício físico, é possível listar como limitação para a implementação de estudos nessa linha, a falta de estudos com dependentes primários (motivado intrinsecamente a realizar o exercício físico) e secundários (motivado extrinsecamente a realizar o exercício físico, sendo associado inclusive a distúrbios alimentares e de imagem corporal)14,57, a falta de controle das possíveis variações diurnas em relação aos estados de humor durante a privação, a dificuldade de recrutamento, o período de privação a que o sujeito será exposto, falta de estudos de privação com participantes em seu ambiente natural e a época do estudo11,19. Além disso, a dificuldade no recrutamento de participantes voluntários dificulta uma melhor analise dos efeitos da privação do exercício físico nos estados psicológicos e fisiológicos, já que a privação voluntária do exercício físico permitiria uma investigação mais sistemática da relação entre exercício físico e os sintomas relacionados com a privação do exercício físico9,11.

    Limitações como essas, evidenciam como a concepção dos estudos sobre a privação do exercício físico é variada tornando difíceis as comparações entre os estudos, por exemplo, os participantes dos estudos variavam entre atletas e praticantes regulares de exercício físico19. Portanto, um maior aperfeiçoamento dessas escalas ou o desenvolvimento de instrumentos mais sensíveis são necessários para que as investigações possam avançar nos estudos sobre a privação do exercício físico24.


    CONCLUSÃO

    De acordo com os estudos utilizados neste artigo de revisão, pode-se concluir que praticantes com dependência de exercício físico desenvolvem uma necessidade de se exercitar de forma incontrolável e obsessiva, e quando privados de realizar essa atividade desenvolvem diversas alterações negativas sobre os aspectos fisiológicos e psicológicos. Nessa mesma linha de raciocínio, praticantes com transtorno de imagem corporal também enfrentam grandes dificuldades durante a privação, já que utilizam o exercício físico para perda ou aumento do volume corporal, na tentativa de diminuir o seu sofrimento físico e psíquico já desenvolvido devido à distorção da própria imagem corporal.

    Dentro deste contexto, é importante salientar que as alterações psicológicas e fisiológicas desenvolvidas durante a privação do exercício físico podem aparecer após 24-48 horas de privação do exercício físico, onde tanto homens como mulheres desenvolvem sintomas semelhantes durante a privação do exercício físico. Outro aspecto importante encontrado nas pesquisas são as limitações metodológicas, como por exemplo, a dificuldade de recrutamento de voluntários, o período de privação, a utilização de voluntários dependentes e a falta de controle das variáveis circadianas. Onde, o controle dessas variáveis auxiliará na detecção de como a privação pode influenciar no funcionamento psicosocial.

    Finalmente, é possível concluir com base nos estudos encontrados nessa revisão que praticantes com dependência de exercício físico e/ou transtornos de imagem corporal durante a privação do exercício físico podem desenvolver alterações de comportamento, alterações fisiológicas e distúrbios de humor.


    AGRADECIMENTOS

    Os autores agradecem o apoio técnico e financeiro da AFIP, CEPE, CEMSA, FAPESP, CNPq, INSTITUTO DO SONO e a FADA/UNIFESP.


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    1. Doutor (Docente).
    2. Especialista (Estudante).
    3. Pós-doutor (Docente) Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP, Centro de Estudos em Psicobiologia e Exercício.

    Correspondência:
    R: Professor Francisco de Castro, 93 - Vila Clementino
    São Paulo - Brasil. São Paulo - SP Cep: 04020-050
    Fone/ Fax: +55 11 5572-0177.
    E-mail: hanna.karen@unifesp.br

    Este artigo foi submetido no SGP (Sistema de Gestão de Publicações) da Rev Bras Cien Med Saúde em 3 de novembro de 2009 . Cod. 46.
    Artigo aceito em 26 de março de 2010 .
    Os autores agradecem o apoio técnico e financeiro da AFIP, CEPE, CEMSA, CEPID-SONO/FAPESP (processo número: 1998/14303-3) CNPq, INSTITUTO DO SONO e a FADA/UNIFESP.

     

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